A moça do vestido azul

Minha avó Mimi – Carlota Sampaio Chaves – ouvia novelas de rádio. E eu com ela, sempre.

Um dia fomos ao velho teatro Santana assistir “A Moreninha”, pela companhia de Bibi Ferreira. Fora “Branca de Neve e os Sete Anões” era a primeira vez que eu ia a teatro.

Eu acompanhava a trama com atenção até que, no fundo do palco, uma das amigas da “Moreninha”, vestida de azul, disse sua primeira fala. Cochichei: “Vovó, é  a Cacilda Becker!” Reconheci, pela voz, a atriz de rádio que acostumara a ouvir:  meu ídolo. Com o perdão da franqueza, não teve pra mais ninguém! Eu só seguia com o olhar o vestido azul que se movimentava no cenário.

Quem diria que a menina deslumbrada com a voz que saia do vestido azul fosse, um dia,  ser jornalista e entrevistasse Cacilda Becker tantas e tantas vezes? E que, ainda por cima, tivesse a coragem de criticar a estrela maior de sua meninice!

Pois aconteceu!

No dia  14 de junho de 1969 – há 48 anos, portanto – morria no Hospital São Luiz a moça do vestido azul, que ficou amiga da repórter (e  da crítica de teatro)  em que se transformou a menina que ouvia novelas.

Aqui, em seguida, uma das mais de vinte entrevistas que fiz com ela.  Fora os papos, as confidências, o acompanhamento das lutas.  Depois, a cobertura da morte, uma  das experiências mais contundentes da minha vida de repórter.

Cacilda Becker fez, um dia, com seu vestido azul, a alegria  de uma garota de dez anos sentada numa frisa do Teatro Santana. E, há 48 anos,  fez chorar uma repórter experimentada e já calejada.

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                 Na tevê Record, Valmor Chagas, a repórter, Cacilda Becker e Fredi Kleemann

 

Cacilda Becker:

“Importante nunca decepcionar o público”

            “Maria Stuart”, de Schiller, continua levando público Cacilda Becker0004cada vez mais numeroso ao Teatro Brasileiro de Comédia. No espetáculo, depois de dois anos de ausência nos palcos paulistanos está Cacilda Becker, que voltou em plena forma, extraordinária na sua criação de “Maria Stuart”. Pela primeira vez, também, as duas irmãs, Cacilda e Cleyde Iaconis contracenam como antagonistas e em dois grandes papeis. Cleyde é a  rainha Elizabeth.

                Entrevistar Cacilda Becker não é tarefa fácil. Não há quase nada sobre ela que já não se tenha dito. Sabe-se tudo. Como começou sua carreira, em que companhias trabalhou, quais as peças em que atuou. Mesmo assim, vamos lá!

        –  Que acha da situação atual do teatro brasileiro?

         – O teatro brasileiro atravessa uma fase de franco e absoluto progresso. Nota-se um esforço coletivo de toda a classe no sentido de progredir cada vez mais. Já sabemos, claramente, o que pretendemos do teatro e o que faremos dentro dele. Já traçamos o nosso rumo.

         –  Mesmo no que diz respeito ao autor nacional?

– Esse ainda é o único ponto em que somos vulneráveis. E é justamente no que menos podemos trabalhar. Enquanto não se começar dentro das escolas – desde as escolas primárias – a incentivar o aparecimento de valores no setor da teatrologia, enquanto não se começar a formar talentos, atores, autores, críticos, diretores e  mesmo público, pouco poderemos fazer.

– Qual a peça que mais gostou de interpretar?

– Todas. Todos os papeis vieram encontrar-me em estados de espírito propícios.

         – Mas dentre todas as que interpretou certamente houve alguma que a impressionou mais fortemente?

         – “Antigona” foi um trabalho que  me emocionava e mesmo me preocupava. Personagens modernas têm sempre a faculdade de despertar todos os problemas que trazemos ocultos  e que não surgem à tona por que são disfarçados pelo trabalho, pela vida cotidiana. Assim, “Antigona” foi uma experiência da qual nunca me esquecerei. “Maria Stuart”, meu papel atual é também um personagem emocionante. “Pega Fogo” foi uma experiência interessante por ser um personagem criança. Puro, simples e extraordinariamente  comovente.”

– Tem alguma peça que gostaria de interpretar um dia?

–  Não. Não faço minha carreira dirigida  para este ou aquele ponto. Aceitarei todos os papeis que me derem.

Arte Moderna –  Que acha da arte moderna? Viu as Bienais?Cacilda Becker0005

– Não tenho acompanhado o movimento das artes plásticas por falta de tempo. Mas da arte moderna, no que concerne ao teatro,  posso falar. É um movimento muito pessimista, que ainda se afirma e se nega. Está ainda em fase de busca. Geralmente reflete inquietude e angústia sendo um retrato do século. Por isso nem mesmo é agradável. No teatro – não é covardia o que vou falar – prefiro representar os clássicos. É mais repousante, mais positivo.

Coisas de que gosta ou não gosta –  Uma pergunta: quais as coisas que mais detesta?

– Telefone. Vestir-me com saia, vestido ou salto alto durante os ensaios. Qualquer encrenca no automóvel (acontece, sempre, de furar o pneu nos momentos mais incríveis!) E levantar-me da cama de manhã. É horrível! Sou tremendamente preguiçosa.

– E quais as coisas de que mais gosta?

– Meu filho em primeiro lugar. As crianças em geral. Adoro ouvir barulho de criança. Gosto também de teatro, é claro. De minha família. De dormir! (Ah! Como eu gosto de dormir!) De ler. Leio todas as noites antes de dormir, até quatro, cinco horas da madrugada. Outra coisa de que gosto é de Campos do Jordão. E de mais uma coisa: tirar matinhos  e tiririca do jardim com meu filho. Aliás, sou das pessoas que gostam muito mais do que desgostam.

 Os artistas e o público –  Como recebe as manifestações dos fãs?

– Atualmente estou numa fase de muito contato com o público. Por causa da televisão, que nos torna mais conhecidos. Acho muito importante o contato do artista com o seu público porque nos dá a medida exata das nossas responsabilidades. Vemos com que carinho, com que sede ele recebe tudo o que lhe damos. É preciso nunca desapontar o público!

– É geralmente reconhecida nas ruas? Falam com você?

– Sempre! Motoristas de taxi, empregadas domésticas, gente de todas as condições sociais. Reconhecem-me na rua mesmo sem maquiagem. O interessante é que no público a gente não distingue sexo. Mulheres, homens ou crianças mostram o mesmo interesse, o mesmo carinho, a mesma alegria quando nos encontram. No Rio, então, era uma coisa comovente: geralmente eu nunca conseguia pagar o meu taxi. Chegada a hora de descer sempre aparecia alguém que me reconhecia e vinha correndo oferecer-se para pagar o taxi e conversar um pouquinho. Sempre fico emocionada quando acontece isso.

Cuca, o filho  – Qual a profissão que deseja para o seu filho?

– Aquela para a qual ele tiver vocação. Ainda é prematuro pensar nisso. Meu filho, graças a Deus, é muito inteligente. Vivo, esperto, com uma grande noção de responsabilidade, com ótimas tendências de caráter. Uma criança que nunca me deu trabalho. Agora eu mesma o estou alfabetizando. Todos os dias é ele quem me acorda, leva-me o café e já traz o caderno e o lápis para a lição. Outro dia eu o trouxe para assistir “Maria Stuart”. Gostou e até chorou. Muitas pessoas disseram que eu não deveria tê-lo trazido, mas acho que Schiller só lhe pode fazer bem e contribuir, desde já, para a sua formação.

Teatrólogos  – Qual, a seu ver, o mais expressivo dos teatrólogos modernos?

– Gosto muitíssimo de Anouilh!

– E dos brasileiros?Cacilda e Valmor0001

– Todos os dramaturgos brasileiros têm seus pontos negativos e positivos. Todos têm pelo menos uma grande peça e qualidades excepcionais. Apenas têm tido menos oportunidades do que nós, os atores, não têm sido muito representados. Não posso dizer que gosto deste ou daquele porque, como disse, cada qual tem os seus sucessos e insucessos.

Turnê do TBC –  Como receberia a notícia de uma turnê do TBC pelas principais cidades do mundo?

–  Acho que o TBC já está em condições de realizar isso. Acredito que em 1957 isso se concretize. Será algo extraordinário para todos nós e para o Brasil, de um modo geral.  Nesse momento, porem, o TBC vai precisar contar com o apoio não só do Governo como dos bons patriotas.

– Em que findaram as negociações para que tivesse seu teatro próprio?

– Eu só teria o meu próprio teatro se dentro do TBC não encontrasse mais satisfação artística. Numa companhia sempre haverá outras artistas que ambicionarão bons papeis, isso é normal. Mas neste momento, no TBC, eu encontro tudo o que, artisticamente, me satisfaz. Logo não iria contrair obrigações com um teatro meu, que me traria muita dor de cabeça. Depois eu prefiro muito mais ser colega dos meus colegas do que a “patroa”.

Leituras –  Já que você lê até de madrugada podemos saber de suas leituras  prediletas?

– Como não! A Bíblia e leituras religiosas em geral, que me dão paz de espirito. E história. Gosto muito de saber o que houve antes. Quando tenho tempo leio também poesia. Tenho uma tímida paixão por Carlos Drummond de Andrade, ele me mete um medo incrível. Gosto também de Fernando Pessoa, de Manoel Bandeira.

– E em prosa?

– Só leio teatro. E  poesia.

Público: carioca e paulista –  Poderia fazer uma comparação entre os públicos de São Paulo e do Rio?

– Há muitas diferenças. Posso dar uma: o paulista manda flores e um cartão ao camarim. O carioca vai até os bastidores e nos dá um abraço.

A conversa chegara ao fim. Cacilda Becker ainda diz que adora  televisão e todo o pessoal da tevê, gentís, cheios de coleguismo. Disse que um dia ainda pretende tomar outro rumo na televisão, em programas que não tenham apenas a finalidade de divertir.

E para dar ideia da consciência profissional da atriz, contamos que “Maria Stuart” começa às 21 horas, mas que três horas antes ela já está no camarim. Fica sozinha, maquiando-se e se concentrando. Quando entra em cena já não é mais Cacilda, é a própria “Mary”, a infeliz rainha prisioneira de Elizabeth de Inglaterra. (A Gazeta, 29-10-1955)

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  Com Cleyde Iaconis, a irmã

 

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